quinta-feira, 11 de março de 2010

Bancos de praça azuis

Eles se encontravam todos os dias no mesmo lugar havia muitos anos. Um velho banco de uma praça pouco visitada, tão velho e gasto pelo tempo que parecia que ia desmoronar com os dois em cima a qualquer momento. A praça e o banco já haviam passado por seu período áureo, agora eram apenas um lugar esquecido que apodrece. Algumas poucas pessoas lembram daquele lugar, poderia contar no dedo e a idade desses dedos somadas daria folgado alguns séculos, todos que lembram da praça são muito, muito velhos - alguns que poderiam ter alguma lembrança já até a perderam para a falta de memória. Também aqueles dois que se encontravam estavam velhos e maltratados pelas suas próprias vidas, tão velhos quanto as árvores daquele lugar, muitas das quais viram nascer e morrer e apodrecer; Viram árvores e mato crescendo para todo lado, tentativas da prefeitura de manter a praça limpa e bem vista, ainda lembram da vez que deram um jeito por lá, cortaram todas as plantas e fizeram canteiros, jardim francês mesmo, o que não durou muito porque esqueceram de contratar um jardineiro para manter tudo nos eixos, mas aquela foi uma bela primavera, deve-se dizer. Agora não havia mais perfume florido ou amadeirado, cheirava mais a fumaça de carros, que andam ao redor. Os bancos perderam a cor de outrora, eram azuis eles lembram, mas você nunca poderia imaginar, creia. Restaram apenas galhos secos e retorcidos, mesmo as plantas daninhas morreram quase todas, e eu nem sabia que elas morriam, essa praga. Na esquina existe uma barraquinha de cachorro-quente, que já vendeu quentão nas festas juninas, que já vendeu algodão-doce quando o circo passava pela cidade, agora ainda mantém seu vigor a dita barraca, mas porque o velho vendedor deixou tudo como legado para seu filho mais novo, que está lá até hoje - e sempre cumprimenta o casal de velhinhos, como amigos de seu falecido pai. Chegavam sempre no mesmo horário, quinze para as seis da tarde, sentavam e acendiam cada um seu próprio cigarro.

As rugas eram tantas em seus rostos que já nem incomodavam mais, devagar foram vendo a velhice chegando, não houve choque, um constante apagamento da vida e do brilho de antes. Como os bancos da praça, você não adivinharia jamais suas cores de outrora. Às vezes algum deles não ouvia o que o outro havia dito, e lá começavam a repetir palavras mais e mais alto. Cada vez que se encontravam havia mais gritos, parecia. O tempo não esquece ninguém, nem a morte tampouco. E estavam cada vez mais velhos, mais fracos e cansados, mas nem por isso deixavam de se encontrar. Isso há um bom, bom tempo. Sentavam no mesmo banco da mesma praça e fumavam um cigarro, apesar da velhice e as fraquezas que ela acarreta no organismo, apesar da insistência dos netos e sua argumentação "olha sua idade", "esse câncer não tarda". Mas era sempre apenas um cigarro, por muitas vezes o único do dia. Era o pequeno prazer de ambos, a ingestão da nicotina diária e a companhia do outro no banco, acredito que as duas coisas, os dois fumantes juntos, afinal, foram alento para suas próprias tristezas e, com certeza, esses momentos lhes pouparam algumas rugas.

É verdade que tentaram parar de fumar - algumas vezes, aliás. Tentaram mesmo conversar sem tragar, no princípio até funcionou, mas o assunto sempre parecia acabar mais cedo do que de costume. Não havia tragadas nem fumaça, apenas no inverno, quando brincavam de assoprar o ar gélido e fingiam estar fumando. Depois de uma certa idade pararam de tentar parar com o vício, se o câncer não havia chegado até então, não chegaria mais - e se chegasse, chegava atrasado. Um consentimento mútuo nunca mais os separou do tabaco, da praça e de si mesmos. Às quinze para as seis da tarde.

Conversavam sobre tudo, ficavam calados. Se olhavam e também olhavam para o nada. Olhavam para o tempo e para o céu. Brincavam, tagarelavam. Fumavam e riam.

Velho: Boa tarde, minha querida. Como vai?
Velha: Vou bem, e você?
Velho: Estou bem. Mas com um pouco de frio, esses dias andam horríveis e só pioram. E ainda estamos em fevereiro!
Velha: Você só reclama, como sempre, daqui a pouco esquece disso e reclama de outra coisa. Velho chato dos diabos!
Velho: Veja lá como fala comigo, mocinha.

Riram-se e pegaram seus cigarros. O velho estica o braço com a chama do isqueiro na ponta dos dedos para a velha.

Velho: Olá, meu bem! Você vem sempre aqui? (e tenta esboçar sua cara de garanhão de outrora)
Velha: Alzheimer ou o que, agora?

Sorriem ainda um riso gostoso, coisa que não tem idade. Seu relacionamento era esse misto de brincadeiras e escárnio. Ora riam de si mesmos, ora dos outros. Quando não tinham o que dizer ficavam observando a fumaça de seus cigarros se mesclando no ar, leves bailarinas. Eram uma bagunça de vidas já passadas que se juntavam num banco de praça vazia e ficavam horas falando sobre temas indissolúveis e sobre o nada.

Velho: Você sempre corta meu barato. Um dia eu canso e vou-me embora atrás de outras garotas.
Velha: Nessa idade? E acha que vai longe?
Velho: Bah! Fuma seu cigarro quieta.

Tragam sempre juntos, por acaso. Fumam a mesma marca de cigarros. Vez ou outra surpreendiam-se ao constatar que pensavam numa mesma coisa, reparavam nos mesmo detalhes da praça, riam das pessoas estranhas que passavam. Jamais saberei dizer se perceberam o quanto eram parecidos, o modo como sorriam e falavam, os olhos dela tão parecidos com os dele, e os medos que eram quase os mesmos - mas imagino, e acredito nisso, que eles soubessem de tudo, mas não precisavam ficar falando nada a respeito. Acredito que eles souberam de toda a inveja que deram aos deuses por causa desse amor tragável.

Velha: Ainda sente frio?
Velho: Um pouco, na ponta dos meus pés. Eles estão sempre gelados. Não consigo esquentá-los. É a idade e esse problema de circulação com ela.
Velha: Faço umas meias de lã para você, azuis que sei que gosta.
Velho: Obrigado. Como vão os netos?
Velha: Estão todos bem. Animados com a volta às aulas. E os seus?
Velho: Bem. Lembra do meu neto mais velho? Pois então, passou no vestibular. Calouro.
Velha: Isso é ótimo. Bem, preciso ir agora.

Eles não se despediam mais. Aos poucos entenderam que isso, com o passar dos anos, lhes dava um grande medo de dizer adeus para nunca mais. Ignoravam a despedida, portanto, e sempre se encontravam no dia seguinte. Salvo um ou outro dia de chuva, mas já se encontraram com guarda-chuvas em punho e sorrisos e cigarros. Quando a família comentava esse affair idoso não diziam coisa alguma, o velho ralhava, e ela sorria complacente dizendo que já havia passado sua época para namoros - mas queria um cigarro.

Velha: Bela tarde.
Velho: Não é das piores.
Velha: Está fumando outra marca de cigarros? Isso lá é hora de inventar moda?
Velho: Os meus acabaram, roubei do meu neto. Não são tão ruins.
Velha: Toma um dos meus. Tem fogo?
Velho: Não nego fogo para você, meu bem.
Velha: Você e suas piadas sem graça.
Velho: Engraçadinha!

Se divertiam enquanto a fumaça dos cigarros se esvaía. Mas nem todos os assuntos eram agradáveis: amigos em comum morriam, a morte parecia gostar de afirmar sua presença. Isso os incomodava sobremaneira, porque viam-se envelhecendo; brincavam se perguntando quem morreria primeiro. O velho sempre argumentava que estudos já provaram que as mulheres vivem uns bons anos a mais. Ela sempre dizia contente que aproveitaria bem esses anos, até dava detalhes. Mas sempre terminavam esse assunto com algum silêncio. Não saberiam como enfrentar essa perda, dentre as muitas possíveis. Um dia ele se atrasou, e quando chegou estava com uma cirurgia marcada para a semana seguinte. Fumaram dois cigarros cada um nessa tarde. Ela soube apenas algum tempo depois que ele havia retirado uma simples verruga que o incomodava, velho que exagera todas as coisas! Xingou-o por tê-la preocupado.

Por vezes brincavam com seus passados, com as coisas que poderiam ter acontecido. Tentavam imaginar como seria de outro jeito. Como teria sido um com o outro, "mas-você-nunca-me-deu-bola", "mas-também-você-era-um-baita-mulherengo". Brincavam com o passado e com o futuro derradeiro. Medo, medo da morte. Que mundo haviam deixado para seus netos. Tudo o que fizeram de errado, certo e duvidoso. Com essa idade não há porque se envergonhar do passado, nem arrependimento sobra. O que resta é lucro, e a dúvida de até quando.

A praça já era quase apenas o sonho de si mesma e pó quando um deles não chegou às quinze para as seis. Depois de dois dias sem encontrar sua velha amiga de fumo, o velho soube que ela estava em um hospital num bairro próximo. Não foi vê-la, não poderiam fumar num hospital, afinal. Acima de tudo, não queria ver como ela estava: tinha medo. Continuou indo à praça e sentando no mesmo banco. No fim de semana um dos netos dela veio a seu encontro, ele tremeu todos os ossos do corpo e assustou seu frágil coração apenas por ver aquela figura atormentada pelas olheiras das noites mal dormidas e a pele com cor fragilizada pela dor. Ela havia morrido, o enterro era no dia seguinte. Nesse momento ele a imaginou encaixotada, cheia de flores e roupas que não combinavam com ela. Ousou imaginar um sorriso em seu rosto para lhe dar algum alento e imaginar que fora feliz. Nunca teve medo de cemitérios, nem da morte, mas desse desfile fúnebre de mal gosto não quis participar. Deixou que os filhos carregassem o caixão. Ela havia deixado um presente para ele, em seu leito de morte, seu último maço de cigarros - que não deixaram que fumasse no hospital, e que ela também não pensou em fumar lá, se não no banco da praça. Não houve tempo e ficaram alguns cigarros para ele com um bilhete escrito com letras trêmulas mas grandes (para que a pouca visão do velho fosse suficiente), que ele leu depois de pegar seus óculos: "Não roube mais o seu neto. Adeus". Pôde ver claramente seu sorriso dizendo essas palavras, e ficou fascinado com a facilidade com que lembrava de seu rosto, apesar da idade avançada e da memória fraca. A palavra "adeus" que terminava seu bilhete foi bastante difícil de ser lida, apesar da letra legível e da familiaridade com o idioma, o velho custou a balbuciar aquele adeus por escrito.

Sentou no banco da praça por mais alguns dias, fumou os últimos cigarros dela - sozinho e pensando nela. Quando o último se apagou, pensou no que havia dito sobre as mulheres viverem mais e disse para si mesmo que aquilo era só uma covardia de sua parte, porque é muito mais fácil morrer e ser carregado para o leito, do que enfrentar o esquecimento como fazia agora. Embasar na ciência sua própria morte prematura lhe retirava a necessidade de imaginar um mundo sem sua velha. Foi embora pouco antes do sol se pôr e nunca mais voltou àquela praça - ela acabou por perder todos seus bancos de vez, todos os restos de plantas e de vida, e perdeu infinito aquele casal. O velho deixou para trás a lembrança de um banco azul-muito-forte, e um sorriso de mulher, e uma lembrança de uma vida que não houve. Deixou para trás o cigarro, nunca mais fumou. Ele morreu cerca de dois anos depois dela, seu último pedido foi para que o cremassem. Suas cinzas deveriam ser jogadas por aí, para que seus carbonos se misturassem com a natureza, com a vida, queria voltar ao mundo, fazer parte de tudo dessa vez - inclusive da nicotina e da fumaça dos cigarros. Antes de morrer, pediu para ir até à janela do hospital, dar uma última olhada no mundo com seus olhos humanos - seus filhos o levantaram dizendo sempre "não diga isso, papai, o senhor vai ficar bem". Quando chegou à janela, pôde ver uma praça defronte, não a sua praça e de sua velha amiga de outrora, mas uma que fica para quem ainda tem o que viver, e para quem ainda tem tempo para fazer de sua vida o que bem entender dela. Nesse momento ele chora, suas últimas lágrimas, que tem dificuldade de sair e descer todo o percurso esburacado pelas rugas. Com os olhos marejados lembra exatamente de como era o rosto de sua amiga, seus tiques nervosos, seu cheiro - lembra plenamente do azul fortíssimo do banco. São quinze para as seis, e não tem ninguém lá.

Nenhum comentário:

Postar um comentário