sábado, 20 de março de 2010

Você me mandou todo o caminho para baixo, para baixo até eu ficar de joelhos [na merda]. Você me levou por todo o caminho de mãos dadas até agora, cada passo mais para baixo: você vai ser a última vez, você vai ver. E quando você tentar lutar contra isso, quando eu lhe mandar embora, para longe de mim, talvez seja tarde demais, quando você olhar para trás e perceber o que fez e tentar me encontrar onde havia me deixado. E de manhã, quando você estiver acordando e não me encontrar: eu estarei longe de sua vista, longe demais para você me encontrar, distante para você conseguir enxergar qualquer sombra de mim. Que chance nós temos, quando você gasta todas as balas que lhe dou no alvo errado - quando você erra todos os tiros que eram para mim na pessoa errada. Todas as chances que lhe dei desperdiçadas. Nas trevas, quando você encontrar a si mesma, sozinha ou muito bem acompanhada, quando você perceber o que fez, e o que aconteceu conosco: eu estarei longe de sua vista, afogado no oceano que criei para naufragar.

Você vai ser a última vez, você vai ver isso.

(Tradução muito mais do que cheia de liberdade poética para a música All the way down de Glen Hansard)
O poeta disse muitas coisas. Talvez eu diga muitas coisas algum dia; pode ser que alguém me entenda desde já.

E amanhã? Vai ser um grande dia.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Abro a janela e olho o mundo lá fora. Fico imaginando se alguma daquelas pessoas pode ser você, que me procura. Infelizmente não enxergo longe, portanto, nunca saberei se você é uma delas. Talvez se eu me esforçar. Talvez você não esteja ali e seja como terminar com o pouco do que ainda enxergo. Sentado, pensando em muitas coisas, tantas que já nem sei mais. Penso bobeira; penso e sonho. Em um acesso de raiva, ou seja lá o que for, jogo pela janela as rosas que estavam sobre a cama, agora elas pairam no ar e fecho os olhos antes que elas toquem o chão - para mim elas nunca deixaram de flutuar, vão estar em minhas lembranças como estiveram no céu. Nunca tocaram o chão, não se desfizeram em restos de pétalas. Os doces que gostamos vão para o lixo, junto com os planos para a noite que valia um ano bem vivido. Empurro algumas coisas para debaixo do tapete, na esperança de esquecê-las por lá e algum dia, por acaso, encontrar tudo e ter alguma lembrança - o tapete fica com uma saliência que é vista de longe, nunca vou conseguir esquecer esse negócio desajeitado no meio do meu quarto. Caminho de um lado para o outro, e volto e vou. Passeando por todos os quartos, sem saber para onde ir. Saio de casa, ando pelas ruas - a cabeça baixa de quem não quer ver nada. As calçadas sujas, as ruas cheias de pessoas desconhecidas que não se importam comigo. Os carros rápidos que se cruzam e não existem. As praças e casas. Não vejo rostos, não vejo nada. Assopro tudo isso para longe, tão frágil que é. Trago amargo. Desinteressados tragos. Ouço risadas longas, conversas ao longe. Ouço passos largos e buzinas enraivecidas. Continuo andando como sempre tenho feito, caminhando a esmo por aí. Como se fosse encontrar o que procuro em alguma esquina, como se o que procuro fosse surgir na minha frente, bater em mim e gritar que era isso que eu procurava. Vou andando distraído, fingindo qualquer coisa, cantarolando alguma música que não tem nada a ver comigo, para não ter que cantar minhas próprias e morrer de saudades. Não conseguirei terminar esse texto, antes ele termine a mim.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Masturbação emocional é acreditar no valor do amor, da perfeição e da beleza. O amor eterno sem erros e pontos fracos, daqueles idealizados e cheios de contradição encontrados nas literaturas desse mundo pitoresco. Imaginar a curva de um seio todo perfeito. A perfeição bem feita e a beleza sem defeito. É acreditar na eternidade, no mito do felizes para sempre que você encontra em textos por aí. É idealizar e sonhar com coisas maiores e muito grandes mesmo. Sonhos megalomaníacos, receosos inclusive de existirem. É olhar pelo buraco da fechadura e enxergar a garota ideal tomando banho, imaginá-la sem defeitos e, portanto, criá-la como um ser que não existe: despi-la e vesti-la novamente e conhecer todos os detalhes do seu corpo e o gosto de sua pele - imaginar que tudo o que você sonha dela é verdade. Levar uma vida voltada para esse negócio de ser feliz infinito e todo bonitinho. Olhar nos olhos e achar que entende tudo que está escondido ali, imaginar que você entende plenamente alguém e que essa pessoa te entende. Sonhar com posições diversas e variadas na hora do amor; sonhar com beijos de ponta-cabeça; sonhar, sonhar, sonhar: com sexo, com amor, com as agruras da vida que não dizem nada para você porque está seguro e feliz com a pessoa ideal. Imaginar que essa pessoa te atende, e que vai te ligar sempre que você precisar, mesmo que você não peça ajuda, não fale nada. Acreditar em alma e coração que bate pela paixão e esconde pessoas lá dentro. Falar bobeiras intragáveis debaixo de árvores, com ventos folheados, com uma toalha de piquenique, com um sorriso de alegria incondicional. É acreditar na simplicidade, na verdade. Na sinceridade de cada dia. É esperar eterno pela mesma unica pessoa, que as vezes nem se conhece, ou não se conhece direito. É esperar e muito. Esperança. É mentir para alegrar ao outro, por vezes, e imaginar que será recíproco esse desejo de vamos ser felizes juntos. É tentar ser feliz com algum sentimento debaixo do braço. Fazer planos para sábados a tarde. Encontrar qualquer coisa nas ruas na plena bagunça da rotina e lembrar de alguém, e querer aquela pessoa a seu lado para ver aquilo também - porque você tem certeza que ali está algo que vai mexer com ela. É querer mexer com a pessoa, deixar você louca - de paixão, de amor, de prazer. É estar contente com o que você tem, e ter certeza absurda de que lá fora não tem mais nada que possa te interessar. É preparar uma noite especial, mesmo que ela não tenha nada de diferente. É fazer diferente. Olhar no espelho e querer ser sempre melhor, para a outra pessoa. É pensar em nós dois como um único ser, plausível e perfeito. Subir às montanhas mais altas para buscar uma flor. Tentar esconder a dor desse mundo em seu próprio peito para que não sobre nada para ela. Cumprimentar uma pessoa desconhecida na rua e dizer "vê aquela garota? Eu amo ela demais, merda". Criar jogos e brincadeiras de amor. Brindar aos clichês feitos de papel machè. É querer te ver feliz, querer estar junto, estar perto, grudado e muito bem embolado num corpo só. São as frases bobas e as piadas sem graça. As coisas que apenas nós dois entendemos e rimos. É acreditar que se tem algo de especial. E quando acaba, é procurar alento dizendo que assim é melhor, que você será mais feliz desse jeito. É a negação de tudo que foi dito até aqui, e sonhar de noite com tudo que poderia ter sido.

Bancos de praça azuis

Eles se encontravam todos os dias no mesmo lugar havia muitos anos. Um velho banco de uma praça pouco visitada, tão velho e gasto pelo tempo que parecia que ia desmoronar com os dois em cima a qualquer momento. A praça e o banco já haviam passado por seu período áureo, agora eram apenas um lugar esquecido que apodrece. Algumas poucas pessoas lembram daquele lugar, poderia contar no dedo e a idade desses dedos somadas daria folgado alguns séculos, todos que lembram da praça são muito, muito velhos - alguns que poderiam ter alguma lembrança já até a perderam para a falta de memória. Também aqueles dois que se encontravam estavam velhos e maltratados pelas suas próprias vidas, tão velhos quanto as árvores daquele lugar, muitas das quais viram nascer e morrer e apodrecer; Viram árvores e mato crescendo para todo lado, tentativas da prefeitura de manter a praça limpa e bem vista, ainda lembram da vez que deram um jeito por lá, cortaram todas as plantas e fizeram canteiros, jardim francês mesmo, o que não durou muito porque esqueceram de contratar um jardineiro para manter tudo nos eixos, mas aquela foi uma bela primavera, deve-se dizer. Agora não havia mais perfume florido ou amadeirado, cheirava mais a fumaça de carros, que andam ao redor. Os bancos perderam a cor de outrora, eram azuis eles lembram, mas você nunca poderia imaginar, creia. Restaram apenas galhos secos e retorcidos, mesmo as plantas daninhas morreram quase todas, e eu nem sabia que elas morriam, essa praga. Na esquina existe uma barraquinha de cachorro-quente, que já vendeu quentão nas festas juninas, que já vendeu algodão-doce quando o circo passava pela cidade, agora ainda mantém seu vigor a dita barraca, mas porque o velho vendedor deixou tudo como legado para seu filho mais novo, que está lá até hoje - e sempre cumprimenta o casal de velhinhos, como amigos de seu falecido pai. Chegavam sempre no mesmo horário, quinze para as seis da tarde, sentavam e acendiam cada um seu próprio cigarro.

As rugas eram tantas em seus rostos que já nem incomodavam mais, devagar foram vendo a velhice chegando, não houve choque, um constante apagamento da vida e do brilho de antes. Como os bancos da praça, você não adivinharia jamais suas cores de outrora. Às vezes algum deles não ouvia o que o outro havia dito, e lá começavam a repetir palavras mais e mais alto. Cada vez que se encontravam havia mais gritos, parecia. O tempo não esquece ninguém, nem a morte tampouco. E estavam cada vez mais velhos, mais fracos e cansados, mas nem por isso deixavam de se encontrar. Isso há um bom, bom tempo. Sentavam no mesmo banco da mesma praça e fumavam um cigarro, apesar da velhice e as fraquezas que ela acarreta no organismo, apesar da insistência dos netos e sua argumentação "olha sua idade", "esse câncer não tarda". Mas era sempre apenas um cigarro, por muitas vezes o único do dia. Era o pequeno prazer de ambos, a ingestão da nicotina diária e a companhia do outro no banco, acredito que as duas coisas, os dois fumantes juntos, afinal, foram alento para suas próprias tristezas e, com certeza, esses momentos lhes pouparam algumas rugas.

É verdade que tentaram parar de fumar - algumas vezes, aliás. Tentaram mesmo conversar sem tragar, no princípio até funcionou, mas o assunto sempre parecia acabar mais cedo do que de costume. Não havia tragadas nem fumaça, apenas no inverno, quando brincavam de assoprar o ar gélido e fingiam estar fumando. Depois de uma certa idade pararam de tentar parar com o vício, se o câncer não havia chegado até então, não chegaria mais - e se chegasse, chegava atrasado. Um consentimento mútuo nunca mais os separou do tabaco, da praça e de si mesmos. Às quinze para as seis da tarde.

Conversavam sobre tudo, ficavam calados. Se olhavam e também olhavam para o nada. Olhavam para o tempo e para o céu. Brincavam, tagarelavam. Fumavam e riam.

Velho: Boa tarde, minha querida. Como vai?
Velha: Vou bem, e você?
Velho: Estou bem. Mas com um pouco de frio, esses dias andam horríveis e só pioram. E ainda estamos em fevereiro!
Velha: Você só reclama, como sempre, daqui a pouco esquece disso e reclama de outra coisa. Velho chato dos diabos!
Velho: Veja lá como fala comigo, mocinha.

Riram-se e pegaram seus cigarros. O velho estica o braço com a chama do isqueiro na ponta dos dedos para a velha.

Velho: Olá, meu bem! Você vem sempre aqui? (e tenta esboçar sua cara de garanhão de outrora)
Velha: Alzheimer ou o que, agora?

Sorriem ainda um riso gostoso, coisa que não tem idade. Seu relacionamento era esse misto de brincadeiras e escárnio. Ora riam de si mesmos, ora dos outros. Quando não tinham o que dizer ficavam observando a fumaça de seus cigarros se mesclando no ar, leves bailarinas. Eram uma bagunça de vidas já passadas que se juntavam num banco de praça vazia e ficavam horas falando sobre temas indissolúveis e sobre o nada.

Velho: Você sempre corta meu barato. Um dia eu canso e vou-me embora atrás de outras garotas.
Velha: Nessa idade? E acha que vai longe?
Velho: Bah! Fuma seu cigarro quieta.

Tragam sempre juntos, por acaso. Fumam a mesma marca de cigarros. Vez ou outra surpreendiam-se ao constatar que pensavam numa mesma coisa, reparavam nos mesmo detalhes da praça, riam das pessoas estranhas que passavam. Jamais saberei dizer se perceberam o quanto eram parecidos, o modo como sorriam e falavam, os olhos dela tão parecidos com os dele, e os medos que eram quase os mesmos - mas imagino, e acredito nisso, que eles soubessem de tudo, mas não precisavam ficar falando nada a respeito. Acredito que eles souberam de toda a inveja que deram aos deuses por causa desse amor tragável.

Velha: Ainda sente frio?
Velho: Um pouco, na ponta dos meus pés. Eles estão sempre gelados. Não consigo esquentá-los. É a idade e esse problema de circulação com ela.
Velha: Faço umas meias de lã para você, azuis que sei que gosta.
Velho: Obrigado. Como vão os netos?
Velha: Estão todos bem. Animados com a volta às aulas. E os seus?
Velho: Bem. Lembra do meu neto mais velho? Pois então, passou no vestibular. Calouro.
Velha: Isso é ótimo. Bem, preciso ir agora.

Eles não se despediam mais. Aos poucos entenderam que isso, com o passar dos anos, lhes dava um grande medo de dizer adeus para nunca mais. Ignoravam a despedida, portanto, e sempre se encontravam no dia seguinte. Salvo um ou outro dia de chuva, mas já se encontraram com guarda-chuvas em punho e sorrisos e cigarros. Quando a família comentava esse affair idoso não diziam coisa alguma, o velho ralhava, e ela sorria complacente dizendo que já havia passado sua época para namoros - mas queria um cigarro.

Velha: Bela tarde.
Velho: Não é das piores.
Velha: Está fumando outra marca de cigarros? Isso lá é hora de inventar moda?
Velho: Os meus acabaram, roubei do meu neto. Não são tão ruins.
Velha: Toma um dos meus. Tem fogo?
Velho: Não nego fogo para você, meu bem.
Velha: Você e suas piadas sem graça.
Velho: Engraçadinha!

Se divertiam enquanto a fumaça dos cigarros se esvaía. Mas nem todos os assuntos eram agradáveis: amigos em comum morriam, a morte parecia gostar de afirmar sua presença. Isso os incomodava sobremaneira, porque viam-se envelhecendo; brincavam se perguntando quem morreria primeiro. O velho sempre argumentava que estudos já provaram que as mulheres vivem uns bons anos a mais. Ela sempre dizia contente que aproveitaria bem esses anos, até dava detalhes. Mas sempre terminavam esse assunto com algum silêncio. Não saberiam como enfrentar essa perda, dentre as muitas possíveis. Um dia ele se atrasou, e quando chegou estava com uma cirurgia marcada para a semana seguinte. Fumaram dois cigarros cada um nessa tarde. Ela soube apenas algum tempo depois que ele havia retirado uma simples verruga que o incomodava, velho que exagera todas as coisas! Xingou-o por tê-la preocupado.

Por vezes brincavam com seus passados, com as coisas que poderiam ter acontecido. Tentavam imaginar como seria de outro jeito. Como teria sido um com o outro, "mas-você-nunca-me-deu-bola", "mas-também-você-era-um-baita-mulherengo". Brincavam com o passado e com o futuro derradeiro. Medo, medo da morte. Que mundo haviam deixado para seus netos. Tudo o que fizeram de errado, certo e duvidoso. Com essa idade não há porque se envergonhar do passado, nem arrependimento sobra. O que resta é lucro, e a dúvida de até quando.

A praça já era quase apenas o sonho de si mesma e pó quando um deles não chegou às quinze para as seis. Depois de dois dias sem encontrar sua velha amiga de fumo, o velho soube que ela estava em um hospital num bairro próximo. Não foi vê-la, não poderiam fumar num hospital, afinal. Acima de tudo, não queria ver como ela estava: tinha medo. Continuou indo à praça e sentando no mesmo banco. No fim de semana um dos netos dela veio a seu encontro, ele tremeu todos os ossos do corpo e assustou seu frágil coração apenas por ver aquela figura atormentada pelas olheiras das noites mal dormidas e a pele com cor fragilizada pela dor. Ela havia morrido, o enterro era no dia seguinte. Nesse momento ele a imaginou encaixotada, cheia de flores e roupas que não combinavam com ela. Ousou imaginar um sorriso em seu rosto para lhe dar algum alento e imaginar que fora feliz. Nunca teve medo de cemitérios, nem da morte, mas desse desfile fúnebre de mal gosto não quis participar. Deixou que os filhos carregassem o caixão. Ela havia deixado um presente para ele, em seu leito de morte, seu último maço de cigarros - que não deixaram que fumasse no hospital, e que ela também não pensou em fumar lá, se não no banco da praça. Não houve tempo e ficaram alguns cigarros para ele com um bilhete escrito com letras trêmulas mas grandes (para que a pouca visão do velho fosse suficiente), que ele leu depois de pegar seus óculos: "Não roube mais o seu neto. Adeus". Pôde ver claramente seu sorriso dizendo essas palavras, e ficou fascinado com a facilidade com que lembrava de seu rosto, apesar da idade avançada e da memória fraca. A palavra "adeus" que terminava seu bilhete foi bastante difícil de ser lida, apesar da letra legível e da familiaridade com o idioma, o velho custou a balbuciar aquele adeus por escrito.

Sentou no banco da praça por mais alguns dias, fumou os últimos cigarros dela - sozinho e pensando nela. Quando o último se apagou, pensou no que havia dito sobre as mulheres viverem mais e disse para si mesmo que aquilo era só uma covardia de sua parte, porque é muito mais fácil morrer e ser carregado para o leito, do que enfrentar o esquecimento como fazia agora. Embasar na ciência sua própria morte prematura lhe retirava a necessidade de imaginar um mundo sem sua velha. Foi embora pouco antes do sol se pôr e nunca mais voltou àquela praça - ela acabou por perder todos seus bancos de vez, todos os restos de plantas e de vida, e perdeu infinito aquele casal. O velho deixou para trás a lembrança de um banco azul-muito-forte, e um sorriso de mulher, e uma lembrança de uma vida que não houve. Deixou para trás o cigarro, nunca mais fumou. Ele morreu cerca de dois anos depois dela, seu último pedido foi para que o cremassem. Suas cinzas deveriam ser jogadas por aí, para que seus carbonos se misturassem com a natureza, com a vida, queria voltar ao mundo, fazer parte de tudo dessa vez - inclusive da nicotina e da fumaça dos cigarros. Antes de morrer, pediu para ir até à janela do hospital, dar uma última olhada no mundo com seus olhos humanos - seus filhos o levantaram dizendo sempre "não diga isso, papai, o senhor vai ficar bem". Quando chegou à janela, pôde ver uma praça defronte, não a sua praça e de sua velha amiga de outrora, mas uma que fica para quem ainda tem o que viver, e para quem ainda tem tempo para fazer de sua vida o que bem entender dela. Nesse momento ele chora, suas últimas lágrimas, que tem dificuldade de sair e descer todo o percurso esburacado pelas rugas. Com os olhos marejados lembra exatamente de como era o rosto de sua amiga, seus tiques nervosos, seu cheiro - lembra plenamente do azul fortíssimo do banco. São quinze para as seis, e não tem ninguém lá.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Veja meus olhos, carregados de você. Não é difícil te encontrar, por aqui. Sinto seu gosto em cada beijo como ninguém. Me afogo em saliva. Sinto seu gosto em cada gota de suor, seu cheiro, sua dor como ninguém. Conheço você daqueles abraços, daqueles amassos. Toques, toques desesperados, toques ávidos. Desejo, sexo e amor. Conheço seu gosto e seu gozo como ninguém.
O que me resta de sanidade voou pela janela bem agora para ir atrás dela.

terça-feira, 9 de março de 2010

Ah! As musas dos poetas e artistas em geral, a mulher ideal, o príncipe encantado! O par perfeito e as duas metades de qualquer fruta. Amor à primeira vista, se não deu apague a luz e tente uma segunda vez - as pessoas podem se distrair. O tempo parou quando você chegou! Pena que só eu me apaixonei nesse instante, porque para você o tempo não parou, e apenas eu fiquei com cara de bobo nisso tudo. Saia beijando sapos por aí. Enfrente dragões na busca pela mulher indefesa que te espera. Espere, espere, continue esperando. Vá andando, mas tenha atenção, ela pode estar em qualquer lugar. Acredite, você vai saber quando for amor e pronto é final feliz na certa. Continue esperando seu príncipe de olhos claros, ou sua garota toda gostosa. Espere pela pessoa que foi feita para você, se encaixa no seu amor e nos seus sonhos de vida. Imagine, imagine e coloque na personalidade de qualquer um que chega tudo o que você espera, e quando perceber que ali não cabe tudo isso vá em frente - com essa masturbação emocional. Um dia você percebe. Percebeu?
Mudando de assunto: eu adoro morangos, sabia? Mudando de assunto: nunca fiz piquenique com toalha quadriculada e cesta de comida, sabia? Mudando de assunto: você nunca está feliz com o que tem. Mudando de assunto: eu tenho muitas coisas para falar, e daí? Mudando de assunto: eu tenho muitas coisas que gostaria de fazer, e daí? Mudando de assunto: eu tive muitos planos, e daí? Mudando de assunto: eu tive muitos sonhos, e daí? e daí? e daí? Mudando de assunto: e daí? Mudando de assunto: as pessoas às vezes cansam das coisas como elas são, sabia? Mudando de assunto: eu estou cansado, sabia? Mudando de assunto: eu adoro a vista da noite pela minha janela. Mudando de assunto: eu nunca conheci seu quarto. Mudando de assunto: o tempo não existe como objetividade, mas as coisas se atrasam ou nunca chegam. Mudando de assunto: eu estou atrasado. Mudando de assunto: algumas marcas nunca se apagam, mesmo com os melhores produtos de limpeza anunciados na TV. Mudando de assunto: eu gosto de azul. Mudando de assunto: eu gosto de Blues. Mudando de assunto: cansei disso tudo. Mudando de assunto: a vida é previsível e machuca, malditos masoquistas que vivem. Mudando de assunto: a vida é risível e machuca. Mudando de assunto: viver machuca. Mudando de assunto: estou ouvindo Edith Piaf. Mudando de assunto: minha avó se chama Edite. Mudando de assunto, o assunto acaba, e acaba tudo.
Ninguém é verdade, ninguém é certo, ninguém é coisa alguma. Exceto por mim: eu sei o que sou, e encaro toda a esmagadora dor que isso acarreta numa boa, também sei para onde vou, e não me importo com isso. Admitir que a vida é isso? É essa aquela temida mediocridade do ser, não é? Não duvide, não duvide.
Você pode correr para qualquer lugar no recôndito de sua metafísica pessoal, mas não foge à vontade de seu próprio corpo. Ou o que? Acha que consegue fugir de mim? Pois bem, tente. Sinta-se nas nuvens, você está voando e ninguém te segura, rumo ao infinito que é esse céu: eu tropeço na calçada e te faço dar com a cara no chão; vive de sonhos? Passe fome comigo quando seu sonho não nos puder sustentar. A vida é bela, mas eu me deterioro: será tão bonita quando você estiver velho caindo aos pedaços? Você ama? Coma chocolate! Ou espere que o corpo alheio se empolgue e caia no pecado da carne. A alma é pequena, a alma é pequena, sim! Não tem nada aqui que você faça de bom, minha querida. Não tem ideologia alguma capaz de substituir seu próprio corpo. Você pode negar, mas se eu quiser você faz. Eu sou o que dita sua vida, e não essas bobeiras que dizem por aí. O corpo em eterno estado de putrefação permito que você sonhe com suas metafísicas, apenas para divertir sua vida medíocre. E cuidado com o corpo alheio, somos todos imprevisíveis, ou incompreendidos - somos todos impossíveis.
Cansado disso tudo, e quando me distraio um pouco para o bem do que resta da minha sanidade olho para o lado e voilà! Lá está meu maior medo em toda sua repugnância, o que mais poderia me magoar e voilà! Quem diria que algum dia... alguém disse, com certeza. Onde está aquele que diz "sinto dizer, mas eu avisei". Bom, eu me adverti a respeito, disse tudo para mim mesmo e não me escutei. Maldita vontade de levar as coisas pela mão entre nuvens, dá nisso. Eu te avisei, eu te avisei. Criança boba que sou, esperançosa. Agora o ranço, o ódio e a dor. Olha bem para isso, olha com todo o seu coração e respira esse ar que arde nos pulmões. É só encarando seus medos de frente que você deixa de temer, então olha! Olha bem, filho dessa prostituta que é a Esperança que cospe seu rebento no mundo e não lhe tem amor; fixa bem os olhos nessa verdade inconveniente, de mal gosto, essa brincadeira que não te faz rir nem um riso! Olha e sente o cheiro de todas as dores do mundo, que a decepção pessoal quase dá a você esse gosto. Mas não seja inocente a ponto de imaginar que você guarda todas as mágoas do mundo, acredite, esse lugar é enorme e o que não falta é desilusão. Apenas quero rir de minha própria cara de bobo quando me deparo com isso e quero rir muito, muito alto, e gritar ainda mais alto: eu avisei! E como te falei que isso ia acontecer, era tão previsível! Minha lógica, que também é sua, nunca falha e você não se ouviu a si mesmo. Que é isso? Nível leve de esquizofrenia? Dupla personalidade? Com todos os diabos do inferno, escuta a ti mesmo e pense, não sinta.

domingo, 7 de março de 2010

Eu nunca gostei daquela sua blusa
nem você curtiu meu novo som
você mudou e eu nunca fui tudo aquilo
que você esperava ser um sonho bom

Às vezes não dá para se encontrar por acaso
numa esquina sem ter nada marcado
o tempo das coisas pode dar errado
eu posso até estar ocupado

nem sempre você é o que quer ser
nem sempre você é o que espero eu de você
nem sempre, nem sempre...

Não entendo tudo o que você fala
nem ouço tudo o que você esconde
e guarda por medo ou enganada cumplicidade
posso até errar e não estar lá para te esperar

nem sempre eu acerto tudo e adivinho o mundo
nem sempre carrego a surpresa certa e a palavra
que você espera

posso estar enganado, mas eu acho que sei
o que vai bem com você
posso ser um cara errado mas eu sei
que vou bem pra você

Nem sempre as coisas são o que parecem ser
nem sempre

sábado, 6 de março de 2010

Eu vou indo. Espero ter deixado alguma esperança de saudade, ou alguma coisa qualquer antes de partir. Sigo andando sozinho por ruas que não conheço, observando céus estrelados e luas que não são meus - que não fazem parte de mim, que não tem nada que nos lembre quem somos. Já não encontro seus olhos nas nuvens, nem sinto você me chamando nas noites intermináveis sozinhos. Não sei mais nada! Tanto desejo por um abraço bem apertado do tipo fica aqui e não saia nunca mais, do tipo você é meu tipo, você cabe no meu abraço e encaixa perfeito, você cabe no meu coração e ele bate sem dificuldade mesmo com você lá dentro. Eu vou indo: caminhando por horas, correndo até não aguentar mais (o que não demora por causa desse físico débil). Parto a passos largos e não olho mais para trás. Eu corro e não me falta mais pernas e não me falta mais ar e não me falta mais nada e corro e corro e corro para nunca mais. Sem parar, sem olhar para trás. Das dúvidas não resta mais nada, sobrou a certeza que tanto tentei duvidar. Agora eu sei, o que sempre imaginei. Não me falta mais nada, posso até voar para onde quiser. Eu fui a idéia de mim, quando não me crêem mais, me desfaço em fumaça de pensamento forçado. Agora sou todo fumaça que logo assopram para longe para que não entre nos olhos. Malditos metafísicos que criaram a idéia de mim e de tão eloqüentes até me convenceram!

Espero que quando olhe no espelho encontre no fundo de seus olhos meu lampejo, meu grito e meu brilho. Em teu sorriso a minha piada sem graça e no teu coração a minha verdade ingrata. Quando olhar ao longe e confundir o vulto daqueles que passam com minha própria sombra, então quero saber que seu coração se aperta por minha falta. Não pelo simples gosto do arrependimento que talvez aí brote, mas apenas como alento para minha alma que grita por algum sentimento seu. Espere eu chegar para te dar bom dia com um sorriso e um beijo, e me confunda com todos que batem à sua porta, até a magia acabar com o milagre do olho-mágico. Sinta por mim e sinta minha falta. Mande notícias, envio um postal de lá. Da casa do caralho, vou à merda. Ao inferno abraçar o capeta. Corte aqui para saídas estratégicas pela esquerda, ou pela direita. Por aqui se sai indo direto pela frente do palco e cumprimento todos que assistiram ao meu show e nem pagaram por isso. Meu muito obrigado a quem aplaude e a quem vaia: deixem as flores no camarim, um beijo. Eu vou indo correndo e sem parar jamais de correr só corro só corro e corro para nunca mais sem vírgula sem pausa sem parar.

Deixarei a porta aberta para que você tente me encontrar, e quando perceber que já não estou mais aqui, me mudei para longe, então sorrirei em algum canto desse mundo. Então terei o prazer de sentir sua falta e imaginar que talvez sinta alguma saudade de mim. Tudo isso só para tentar arrancar um sentimento seu. Malditas idealizações e essa coisa idiota de imaginar que aquilo que sonhamos é o que você é, tomar posse da personalidade de alguém e ficar tentando enfiar as coisas que você quer ter ali. Esperança é uma bosta, esperar esperançoso. Veja, estou amassando todas as nossas lembranças e jogo no lixo onde já estavam meus sonhos (e não coloco qualquer ponto de exclamação na frase, qualquer sinal gráfico para dar sentimento - é só uma frase agora). Minha vida é só passado, minha vida é minha literatura: escrevi sobre meu passado.

Corro corro corro, quase chegando a meu lugar. Onde devo ficar, onde querem que eu fique. É estranho esperar por coisas que nunca chegam, será que existem? Acendo meu cigarro e a fumaça que dança no ar é meu oráculo e diz "nunca mais", como um corvo de mau agouro.

terça-feira, 2 de março de 2010

Acordo e me vejo embolado nas cobertas da noite anterior, em posição de feto para me proteger de qualquer coisa, amanhece. Feito bola de gente que parece me enrolo todo em mim e fico escondido apenas com o nariz para fora do cobertor, para respirar um pouco. A preguiça é tamanha de começar o dia ou mesmo de ficar aqui - passo alguns momentos procurando nos recônditos de minha sonolência alguma força de vontade para levantar da cama. O relógio marca ainda sete horas da ressaca, o que me dá algum tempo para desperdiçar deitado. Fico divagando e etc, e tal. Me perco em pensamentos os mais absurdos que uma manhã qualquer possa ter. Tento decifrar o mistério que é a vida, o amor e suas minúcias, ideais quixotescos e sonhos surreais, o Ubermensch bate à porta e pergunta se tenho algum café para emprestar, olho para o lado e estou no inferno dantesco. A volúpia sadeana. Tenho planos maquiavélicos. Acabaram meus cigarros, mas ainda estou um bocado impactado pelo álcool. Minha garganta grita por algum líquido, meu corpo estremece por alguma vida. Mais divagação e pronto, encontrei algumas lembranças que rasguei por desapego ao passado, queimei alguns sonhos por desalento ao futuro. Meu trabalho de maquetaria está todo quebrado e largado pelo quarto, já não tenho mais vontade de brincar. Olho no espelho e me encontro o que sou como me vêem. Lembro dos ideais e sonhos que foram morrendo pelo caminho: quantos astronautas eu já fui num único dia, quantos policiais e bandidos, cowboys e índios, quanta coisa eu fui quando crescesse, mas agora sou o resto de meu corpo pálido e fraco no espelho com alguma olheira. Já não consigo mais voar por aí, nem respirar no espaço. Sou agora também a alegria de todo dia, que cansa, que é uma mentira, bela mascarada de carnaval. Deixo um pedaço de mim no espelho e volto para meu quarto com o que restou, olho para algum canto e encontro mais um pouco de passado. Coisa que não gostaria de ter ali e me lembra. Então tudo pavoneia-se por minha cabeça - feito louco. Tudo palatável novamente, incluindo as partes putrefatas do corpo do passado, toda a saudade escarnecendo de mim rindo com meus eus no espelho. Lembrança infeliz da noite anterior que deixei me esperando ao lado da cama, sentada e paciente para me acordar com seu sorriso amarelo. Preparo um café do melhor jeito possível, o que significa que ficou horrível. Olho uma última vez para meus medos atrás da porta, sorrio e meneio a cabeça. Abro a porta e parto, e olho para trás. Mas continuo andando, até encontrar um novo quarto, onde terei menos de mim que lembrar, e menos de você que me dê alguma falta. Vários novos quartos até algum dia de não-existência, latente.