segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Várias vezes, no decurso da minha vida opressa por circunstâncias, me tem sucedido, quando quero libertar-me de qualquer grupo delas, ver-me subitamente cercado por outras da mesma ordem, como se houvesse definidamente uma inimizade contra mim na teia incerta das coisas. Arranco do pescoço uma mão que me sufoca. Vejo que na mão, com que a essa arranquei, me veio preso um laço que me caiu no pescoço com o gesto de libertação. Afasto, com cuidado, o laço, e é com as próprias mãos que me quase estrangulo.
[Bernardo Soares]

sexta-feira, 28 de agosto de 2009


Saudades da menina dos meus poemas.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Sou todo tormenta por dentro. Dores ao horizonte que fazem vezes de negras nuvens, esperanças que bóiam desesperançadas em algum oceano que sequer se turva por elas. Vivo em dois mundos que se anulam, também me anulo em ambos. Atormentado por mim mesmo, que se cansou de ser o que sou, acorrentado a meu outro que é além de minha morte. Sem ele eu não existo; só ele, já morri. Por ser já não sou. Todo momento, comigo mesmo, ombro a ombro não me reconheço. Deixei lembranças e saudades para traz, até chegar ao dia de hoje, em que já não passo por mais do que algumas pegadas em lugar nenhum.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Cor sem cor, que conheço de cor e não canso de decorar e aprender – mas que ainda não sei bem também. Mancha que marca minhas veias marcadas, mancha deixada para mim que marcou minha ferida intocada. Mancha que agora é minha e me deixou manchado. Marcas, marcas na garganta. Macas, macas.. Saudade só passado, cor sem cor, não me deixa só, passado.

Embolados, enrolados, largados em qualquer canto
amassados, corpos misturados que já nem sei também
quem sou eu, ou ela, onde acabo e ela começa
O que é aquilo ou de onde vem? Ô meu deus!

Embolados, bola de gente amassada que parece,
e ninguém entende nada, este pé é meu ou teu?
Nem tenho idéia que é pé, e o que cabeça,
onde que eu termino e você já começa.

Estou um pouco em mim e muito sou ela,
nós somos um só que parecem dois corpos,
em algum canto, sobre a cama, debaixo dela.

Estamos juntos e misturados, de pé e deitados,
mais que enrolados, apertados, enganchados,
de perto, mais perto, e bem embolados.

[Feito bola de gente]

Eu?

terça-feira, 25 de agosto de 2009

As pessoas que você vê pela rua
são tão diferentes de você que
é impossível que alguma delas
seja sua metade que te espera.

Eu aposto que a noite chega
e você não lembra como eu
gosto de acordar com teu cheiro
[no travesseiro]

Levando a vida a contragosto
em desespero me encosto na
porta pra ouvir la fora
se volta algum passo [teu]

Talvez demore tanto e quando chegar
já não sei mais o que espero e
posso não entender o que vejo
porque deixei de acreditar.

Talvez eu esqueça a cor da tua pele
que se perde em minha lembrança
[e morre]

Talvez eu não lembre amanhã as cores
de nossas saudades de possibilidades
[futuras]
O mundo ideal está na imaginação do próprio homem que o criou e daqueles que lhe acreditam. Mesmo sendo uma criação humana, surgiu como transcendendo a sua própria capacidade. Os sonhos de perfeição se encontraram todos num outro plano onde todas as coisas o são em plenitude de ser. Aglomerado de sonhos e esperanças, que mesmo tocados pela imperfeição podem ser perfeitos, a única coisa que a humanidade criou de aprontado está além de seu alcance. O mundo das idéias está na abstração de um homem sonhador do sublime. Como será viver por entre sonhos?

Por um lado, não se pode chegar a este estado de completo ser. Já foi tudo criado para não se alcançar. Mas por outro, algumas coisas chegam tão perto do passo decisivo para a transcendência de si que por instantes se vislumbram pequenas centelhas de sonhos por toda tua capacidade perceptiva. Olhos descoloridos pela vida encontram a plenitude da alma através de caminhos muito seus e sutis. Os meus se ofuscaram no brilho eterno do sonho de viver em sonhos. O que é o amor além disso? Esperança contumaz de que esteja lá – comigo.
Começo este breve diário a partir do ponto final, que é para lembrar que todas as coisas são feitas para acabar. É também como me lembro a vida. Inicio com vistas no Fim. Deixarei aqui muito do que restou do que fui – e quando escrever a última linha, talvez já tenha perdido a primeira.

Anoto coisas as quais quero lembrar, então, por favor, não me esqueça.

Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.
[Bernardo Soares]