domingo, 18 de julho de 2010

Um barquinho de papel numa poça...

Um barquinho de papel numa poça...

Todos a bordo, vamos zarpar! Soltem as amarras, soltem tudo que lhes prenda ao chão, vamos navegar. Balancem seus lenços multicoloridos na balaustrada, e gritem seus adeus emocionados: au revoir. Esse é o maior barco que jamais existiu. Esse barco jamais existiu. E eu sou seu capitão-imaginário.


Um barquinho de papel numa poça...

Corram soltar aquelas cordas, esse é dos grandes! Se não deixarmos que ele volte para o oceano, nos afunda o barco todo, marujos! Não cobicem o que não podem ter, não mesmo. Se querem pescar, vocês tem que saber quando é pequeno demais e quando é grande demais para levar para o mercado. Alguém lembra o conto o velho e o mar do Hemingway? É uma história muito interessante para o momento... Certo, certo, sem divagar, sem divagar, temos primeiro que nos desvencilhar desse peixe fisgado que nosso barco não suporta. Cortem essas cordas! Deixem-no ir... Ou morreremos tentando!


Um barquinho de papel numa poça...

Um estranho som. Parecia vir de dentro da própria cabeça de quem ouvia, parecia vir de todo lugar. Ninguém sabia dizer o que era, mas todos ouviram. Alguns fizeram o sinal da cruz, outros cuspiram no chão. Teve alguém que gritou um palavrão e depois falou o nome de seu santo, não sei se xingando o santo, amaldiçoando sua própria sorte ou tentando fazer-se escutar com mais eficácia por seu padroeiro. Surgiu algo como uma tempestade, o oceano estava revolto e tiveram que lutar muito por manter o barco e seus pescoços fora da água. Todos tinham experiência com tempestades e todo tipo de agrura, mas nunca nada como isso. A tormenta parecia vir de baixo, do fundo do mar. Junto com o som indefinível. Por um instante ficou tudo calmo. Não havia mais ruído, nem tormenta. O Capitão abriu a boca com o grito...

- Vamos sair logo daqui, seus...

Mas ninguém ouviu o resto da frase. Uma coisa, que ninguém soube dizer o que era, levantou-se de algum lugar amaldiçoado daquelas águas com um ganido ensurdecedor que não parecia dor ou qualquer coisa e, definitivamente, não era um desejo de boas-vindas. O Monstro gigantesco jogou o barco longe com o movimento de levantar-se, os marinheiros gritavam, choravam, morriam aos baldes. O monstro matou mais tripulantes de susto do que o próprio oceano, pegou o barco com tentáculos que saiam de seu rosto e jogou-o fora. Olhando daqui, poderia ser dito que ele queria brincar de assustar aqueles homens – e funcionou, morreram de susto, inclusive. Também, aquele monstro era incomensuravelmente... feio!


Um barquinho de papel numa poça...

“Essa é minha última mensagem para o mundo e espero que alguém leia, algum dia, pois fui escritor, mas não escrevi. Essa era para ser minha viagem em reconhecimento do mundo, onde veria coisas maravilhosas e escreveria sobre elas como ninguém. Tivemos problemas, passando pelo cabo da boa esperança, enfrentamos uma tormenta dos diabos. O barco sucumbiu e com ele boa parte da tripulação. Restamos apenas o capitão, sua esposa e a mim – acho que havia lido em algum lugar que mulheres a bordo dão má sorte... Péssimo modo de começar a acreditar em superstição marítima. O capitão estava ferido, escorregou no convés durante um passeio matinal e fez um corte imenso na perna direita, jeito engraçado de se machucar, com ondas que tinham duas vezes o tamanho do mastro durante o auge da luta entre homens e mar, ele foi logo escorregar e cair, num dia ensolarado e fagueiro. Por sorte restou intacta sua perna de madeira. O corte infeccionou e, depois de alguns dias a deriva, fiquei acompanhado apenas da Judy, digo, Srª Judy. A comida era escassa, tínhamos apenas um kit de sobrevivência que o capitão gostava de manter por perto e parecia agora viria a calhar, mas, a infelicidade rondava aquela nau porque alguém mexeu nas coisas do capitão e comeu todo seu estoque de bolachas salgadas e iogurtes que haviam na bolsa. Não que eu ache que se ainda estivessem lá, ajudariam muito, nesse caso. Sem orgulho de dizer isso, tivemos que comer partes do corpo do capitão. E tentamos sem sucesso usar sua perna de madeira como remo, foi uma bela tentativa - falha. A Srª Judy enlouqueceu por conta de tanto sol e, para bem do resto da tripulação que ainda mantinha sua sanidade eu, pessoalmente, usei a perna de madeira do capitão para tentar assustá-la e com isso trazer de volta a sua razão, o que não deu muito certo, pois ela se assustou demais e morreu. Fiquei sozinho. Não como há vários dias, não sei ao certo quantos, perdi as contas de qualquer coisa. O Sol é quente demais por aqui e a água salgada me deixaria louco. Não sei quanto tempo o corpo humano aguenta nessas condições, acho que li um conto parecido, mas não recordo bem... Então, vou esperar para ver o que acontece e enquanto isso escrevo esta carta, tomo minha última garrafa de coca-cola, onde colocarei estas últimas palavras e aguardarei nelas ser encontrado, na forma de uma memória escrita e assinada por mim, caso não seja salvo a tempo...”

Ass. Sir Afogado Anônimo.


Um barquinho de papel numa poça...

- Alguém solte essa vela! Com esse vento teremos o barco partido ao meio! Vão, corram fazer o que mando! Já vi centenas de tormentas piores do que essa e perdi minha perna esquerda numa delas. Acham que isso me bota medo? Pois, Deus ou o Diabo terão de fazer muito mais para assustar essa carranca!

A tempestade não cessava, apenas se fazia piorar mais e mais. Os marujos por mais experimentados que fossem tiveram medo. Um a um caíram ao mar. O capitão não podia fazer muito, machucara sua perna direita há poucos dias e sua perna esquerda era há muitos anos de madeira – polida atentamente uma vez ao dia. Ouvia-se um toc toc assustado e veemente por todo o convés mas, apesar de ser lobo do mar, dessa vez o capitão não conseguiu salvar seu barco nem sua tripulação. A última coisa que viu antes de desmaiar foi um pedaço do mastro vindo em sua direção e só acordou quando já havia sol, no que restara do barco, com sua esposa e um tripulante que não lembrava o nome. Um escritor fracassado que tentaria a vida em alguma outra terra, ou que quisesse experimentar o mundo para poder escrever alguma coisa decente. Não conhecia nenhuma obra do garoto mas, esperava que tivesse escrito algo notável e deixado em algum lugar seco.

Um barquinho de papel numa poça...

Era um barco que botava medo mesmo de longe, mesmo quando ainda estava rondando o horizonte à procura de um porto, mesmo de perto, quando suas cicatrizes de guerra apareciam ainda mais claramente. Havia muitas lendas a seu respeito: era um barco fantasma, era um barco pirata, era um barco de piratas fantasmas, era um barco que cobrava impostos para a coroa. Ninguém sabia ao certo o que saía daquele convés, não sabiam sequer se era humano. Até que um dia, alguém sobreviveu ao ataque do barco misterioso.

Era um dia de mar calmo, agradável, alguns homens dormiam espalhados pelo convés. Alguém coçava sua perna de madeira. Até que ouviram um tiro de canhão, e os gritos de uma galera que se aproximava. A selvageria dos sons e palavrões que vinham daquele barco botaria medo até no cara mais durão. Tentaram fugir, mas a nau que vinha ameaçadora era mais leve, mais rápida. Aos poucos o mistério ia se dissipando e a tripulação fantasma se fazia cada vez mais humana: eram piratas. Famintos. Cheios de cobiça e pecados no baú.

Meteram duas balas de canhão antes de dizerem palavra. Chegaram com calma e tomaram o barco. Pediram tudo que tivesse de valor e isso incluia qualquer biscoito com camada dupla de chocolate e que não tentassem esconder porque o capitão tinha bom olfato! O Capitão era o próprio Barba-Grande! Uma lenda dos mares, um medo constante entre os tripulantes, uma inveja. Barba-Grande gritou, grunhiu e esboçou algum sorriso apenas quando encontraram o baú com biscoitos de chocolate e balas. Mandou que colocassem em seu barco e, nesse momento, viu-se a imagem aterradora que deixa marcas em todos que vêem aquela nau: a bandeira, negra, com uma caveira de ursinho de pelúcia ameaçadora que lhe observa e espadas enormes que formam um X.

O Barba-Grande se despediu, ao som de seu assobio desafinado, eu acho que era alguma das músicas do Beethoven. E o barco desaparecia devagar, no horizonte. Todos ficaram felizes por não terem morrido, por não terem sido jogados ao mar ou qualquer coisa pior. Mas, naquela tarde, o lanche não teve biscoito nenhum. E o sabor agridoce da perda do chocolate aumentava a raiva e o ódio. Aqueles homens eram a pura vingança!


Um barquinho de papel numa poça...

Estavam os dois sentados num pequeno barco a remos, onde mal cabiam eles e seus equipamentos de pesca. Mas, já contavam vários anos dessa prática sazonal de pescarem juntos nas férias. Juntando a calvície de um e os cabelos brancos do outro, somavam mais de um século de vida. Nem lembravam mais quando algum deles tivera a idéia de pescar, mas era uma ótima pedida, agora que o futebol ficava cada vez mais difícil de ser jogado até o final da partida.

Estavam os dois sentados, no meio de um lago, boiando pacientemente em seu barquinho de madeira com um furo ou outro que não era comprometedor. Tinham coletes salva-vidas e bonés para se protegerem do sol. Um isopor que suas esposas encheram de sanduíches e refrigerantes, mas que esvaziaram daquelas coisas supérfluas e colocaram cervejas até não caber mais. A idade veio, mas, um deles sem medo do câncer ou o que quer que seja, acendeu um cigarro no barquinho. Gostava de pensar que poderia ser o último, que poderia ser especial, que poderia significar absolutamente nada, ou poderia pegar um peixe de repente e ter que jogar seu cigarro longe, antes de terminar – tantas coisas que poderia ficar horas apenas brincando de imaginar.

- Esse lago não tem mais peixes e eu já lhe falei isso.

- Não seja ridículo, como poderia não ter um único peixe nessa água toda?

- Se eu chegar sem peixe em casa, a Gerta vai desconfiar.

- Desconfiar de que? Nessa idade? Ela acharia é muito engraçado você estar dizendo isso.

- Quer um cigarro?

- Mudamos de assunto, é? Quero.

- Voltou a fumar?

- Não, oficialmente.

- Acho que vi um peixe passando ali!

- Está vendo coisas, velho burro.

- Tem cervejas ainda?

- Para o resto da vida, eu diria.


Um barquinho de papel numa poça...

Um garotinho pega uma folha de papel, branca, que encontra no parquinho e corre até seu pai. Mostra o achado com um sorriso inquiridor, que não precisa de palavra.

- O que vai ser dessa vez?

- Um barco!

O pai dobra vagarosamente o papel, ensinando passo-a-passo seu pequeno como fazer, até a forma de um barco aparecer. O garoto já tentara por si só fazer suas construções em papel, mas seus barcos ainda não eram tão impermeáveis e seus aviões precisavam de mais penas. Seu pai que não viu no papel nada além de papel por muito tempo depois de sua infância, gostava de encontrar nos olhos do filho o brilho que tiveram seus próprios em outros tempos. Já fizera muitos Titanics e S. S. Qualquer Coisa, já colocara muitos cubos de gelo em locais estratégicos da banheira para os barcos afundarem, como pedia o filho em suas aventuras durante o banho. Já fizera até mesmo uma guerra aérea inteira, com sonoplastia e tudo. Não se pode dizer facilmente quem se divertia mais.

Hoje seria um barco. Mas, que barco seria esse?

O garoto pegou da mão do pai, quase sem terminar, seu novo brinquedo e saiu correndo. Chovera a noite anterior e havia uma poça ali perto. E lá vai um barquinho de papel a navegar – navegando a remos, a vapor, navegando a nado. Um barquinho de papel em um poça pode ser qualquer embarcação que você queira imaginar. Naquele dia, as aventuras marítimas foram as mais bravias e mais calorosas. Nunca os romances foram tão ardentes. Nunca as terras desconhecidas estiveram tão perto, nem os povos canibais amedrontaram mais. O mundo estava ao alcance de pequenos dedos, muito mais responsáveis do que os meus que escrevo hoje, para controlar tudo. Nunca houve pores-do-sol mais poéticos do que naquela tarde. Nunca, até o dia seguinte.


Um barquinho de papel numa poça...

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