terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Borges e Eu

Ao outro, a Borges, é a quem sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um saguão e a porta envidraçada; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, e deixo-me viver, para que Borges possa tramar sua literatura e essa literatura me justifica. Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, senão da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco lhe vão cedendo tudo, se bem que me conste seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei de permanecer em Borges, não em mim (se é que sou alguém), porém me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso zangarreio de uma guitarra. Faz anos tratei de livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idear outras coisas. Assim minha vida é uma fuga, e tudo perco, e tudo é do esquecimento, ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.

Jorge Luis Borges

Nenhum comentário:

Postar um comentário